quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Mijo

 Pratico, a mando médico, o exercício de caminhar por quarenta minutos, três vezes por semana. Controlo o tempo ouvindo algum disco que tenha mais ou menos esses minutos no total. Ontem foi o Led Zeppelin III, quarenta minutos até a penúltima música.

Uso uma pista que a prefeitura criou sob o viaduto da Jacu-Pêssego que passa sobre a Radial Leste e a Pires do Rio. A pista, dizem, tem cem metros no total, e circunda umas mesinhas de concreto e uma caixa de areia para crianças; por sua vez, é circundada pelas colunas colossais do viaduto, que é muito alto.

Às três da tarde de uma terça-feira lá estão crianças e suas vigias, mulheres gordas que tomam sorvete sentadas diante de seus celulares. E um ou outro vagabundo.

Faço meu périplo uma, duas, dez, vinte vezes. Numa delas, vejo que de uma coluna escorre para a pista o líquido amarelado e fedorento de uma senhora mijada: enquanto eu ia e vinha, um vagabundo achou tempo de esvaziar ali a bexiga.

Salto o charco e vejo, logo à frente, a marca úmida de um pé de criança.

Uma criança pisou no mijo do vagabundo.

sexta-feira, 10 de julho de 2020

Às vezes faz falta ter com quem conversar

Publico no FB um post a respeito da opinião idiota de Lester Bangs sobre Emerson, Lake & Palmer de que a música deles presta se for pastiche, mas não presta se for séria, quando o que entra pelas orelhas, em qualquer dos casos, é a mesma coisa; e que essa idiotice é responsável pela baboseira que é falar em atitude para qualificar a música.

Amigo que parece concordar com o que digo vem e comenta que a performance do EL&P no palco, com moogs esfaqueados e o escambau, "era a postura supostamente bárbara do rock - ah, esses africanos - em necessária reação a (sic) refinada música europeia".

Espantoso. Ele entendeu o que escrevi? Que falar em postura, em atitude, é besteira? Como ele pode concordar comigo escrevendo o contrário do que eu disse? Ademais, o amigo é músico e sabe que Keith Emerson era tarado por Bach e por Ginastera, que não eram exatamente zulus. E por que diabos haveria uma reação necessária? E, necessária ou não, essa reação afinal não começou com Stravinsky e não foi adiante com Schönberg, Stockhausen e que tais?

Não dá para responder o amigo, e discutir, em rede social. Porque não é feita para isso; bate-boca em caixa de comentários é perda de energia e de sanidade. E digo bate-boca porque é nisso que a coisa desandaria: as pessoas se ofendem horrorosamente quando são corrigidas, especialmente em público (porque a rede social, afinal, é o meio da rua).

Bem, não posso tratar com o amigo dos problemas da sua má compreensão dos textos, então venho aqui desabafar, pôr por escrito o que deveria ser dito, mas que não pode ser dito porque hoje todo o mundo é dodói.

(Para não mencionar o inferno na terra que pode virar o uso da palavra zulus.)

A gente acaba solitário de tantas maneiras.

quinta-feira, 9 de julho de 2020

Duas mulheres

A primeira permanecia em pé no metrô cheio de assentos. Nestes tempos mascarados, não vemos feições, e qualquer par de olhos expressivos nos atrai. Os dela eram assim, indo e vindo do celular para a porta do vagão, como se à espera de alguma coisa ou de alguém, ou como se com medo de errar sua estação.

Ficou assim por seis ou sete estações; enfim desceu, sem se sentar nem uma vez.

* * *

A outra sentou-se ao meu lado, lendo um livro que parecia incomodá-la ou afetá-la por demais. Remexia-se, abria as páginas com tapas.

De início, achei que era eu que a incomodava. Sou gordo, os bancos são pequenos e ficam cada vez menores, e meus movimentos às vezes incomodam. Aprendi com isso a ficar imóvel, geralmente preso na minha própria leitura, e a evitar o banco colado à janela, já que há mais espaço do lado do corredor. Mas não era eu: era mesmo o livro. Vi unhas vermelhas, mas não vi o título e não pesquei o assunto.

Quando me levantei, no Alvim, percebi que estava de saia e que tinha belas pernas. Fiquei, saberá Deus por que, espantado, com os olhos grudados nelas. Ela ia tão absorvida na leitura que não percebeu meu olhar, reconheço, muito inconveniente. Coisa rara em mulher, não perceber que a olham.

Que livro seria esse?

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Da vida de velho

Fui tirar o lixo. Um vizinho estava em pé na área da frente de sua casa, do lado de dentro das grades da sua garagem. Atrás dele, a casa tinha todas as luzes apagadas. Lembrei de minha mãe, que, quando estava só, ficava sempre no escuro; lembrei do homem do Brás que, tarde das noites de sábado, quando eu voltava da casa da Mirian, lavava a área de seu sobrado, com todas as luzes apagadas. Lembrei de mim mesmo, que as acendo pouco e cada vez menos quando estou só.

Lembrei disto tudo para concluir que velhice, solidão e luzes apagadas parecem ser uma coisa só.

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Do meu diário - 07/06/2020

Manifestantes ingleses vandalizaram a estátua de Churchill. Picharam "was a racist". Isto com o homem que ajudou a acabar com Hitler e com o nazifascismo. Que combateu para valer os nazistas, sustentando guerra longa e penosa, e, por um tempo, esteve sozinho na briga.

Meu pai pronunciava seu nome como tchútchôu. Sheaffer - a marca de canetas - ele pronunciava xífer. Vêm daí minhas mispronunciations: na escola, apresentando um trabalho, falei píu rérbor para Pearl Harbor. Fui muito sacaneado.